FUNÇÃO SOCIAL DAS CRENÇAS E IDEOLOGIAS RELIGIOSAS
[…] a verdadeira função
da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, […] mas sim
nos fazer agir, nos ajudar a viver. Durkheim
Grande
parte das discussões entre ateus e religiosos na internet tem como pano de
fundo a ignorância e mútua incompreensão. Da parte dos ateus, isso começa com a
convicção de muitos deles de que as religiões são “irracionais”. As ciências
sociais não trabalham com essa perspectiva. Elas são compreensivas. E as
religiões, já reconhecia Durkheim, somente podem ser compreendidas
historicamente. Desde o século 19, entendemos que fazer história é reconstituir
contextos, épocas culturais, mentalidades. A história então monta o modelo do
conhecimento das coisas humanas, que vai ser usado pela antropologia, economia,
sociologia. Qualquer dimensão da ação humana deve ser entendida historicamente.
Foi
o que Durkheim tentou fazer em As formas elementares da vida religiosa, de onde
extraí a epígrafe deste texto. A obra clássica
publicada originalmente em 1912, é uma proposta de estudar o totemismo como
sistema de culto em algumas tribos australianas. Embora fosse positivista,
Durkheim divergia da teoria de Auguste Comte acerca do progresso da humanidade.
Embora também acreditasse na objetividade da ciência social, ele rompeu com a
ideia de linearidade, tão presente na cultura ocidental, para argumentar que a
história não é como uma linha geométrica
nem a humanidade caminha em direção aos mesmos valores ou ao mesmo modelo de
desenvolvimento tecnológico. Essa concepção foi bastante profícua para sua
formulação de um conceito de religião e da função social da religião.
Sua
famosa frase logo no início do livro de que não existem religiões falsas porque
todas correspondem a determinada condição da existência humana, sintetiza o
olhar das ciências sociais sobre os fenômenos religiosos. A primeira parte de
sua obra, onde ele tenta chegar a uma definição de religião, também é
particularmente importante. Uma das maiores dificuldade pra quem quer
compreender ou estudar determinado sistema religioso é definir religião.
Sabemos
que o sentido etimológico vem do latim re-ligare. Mas a questão é: a religião é
um religar de quê? Inicialmente do homem com seus mortos. A religião não começa
como uma crença em divindades, mas a partir do sentimento de continuidade da
vida, a partir do momento em que o homem começa a sepultar seus mortos, com a
realização de enterros e ritos fúnebres. Dessa forma, o sentimento religioso
nasce de uma consciência da insuficiência humana e admissão da fragilidade e
efemeridade da condição humana. No sistema totêmico, diz Durkheim, a ideia de
divindade é completamente estranha. Ele diz que a religião não se originou de
cultos a divindades pessoais, mas de cultos a forças anônimas e poderes
indefinidos.
Se
a religião não se define por uma crença em uma divindade, Durkheim busca um
ponto de convergência entre elas. E, para ele, esse ponto consiste nos dois
domínios em que as religiões dividem o mundo: o sagrado e o profano. Essa
antítese é um fato universal que permite identificar qualquer fenômeno
religioso, e mesmo com as diferenças de contextos, está presente somente na
religião. Os templos teriam a função de separar os dois mundos. O historiador
Marcello Massenzio (2005: 110-111) explica com propriedade essa dicotomia:
As
categorias de sagrado e profano se opõem uma à outra e, ao mesmo tempo, se
pressupõem. O âmbito do sagrado se estende a tudo aquilo que ultrapassa o nível
cotidiano da existência humana: começam a fazer parte dele, portanto, os seres
sobre-humanos, a dimensão do mito, as práticas rituais, as normas e proibições
cuja origem não seja considerada humana. Colocando-se em tal perspectiva, é
legítima a equação sagrado = alteridade, alteridade em relação ao profano, que
coincide com a ordenação normal do mundo. […]
Para
colocar em destaque a complexidade da relação em exame, pode ser útil repensar
a instituição da festa, que pressupõe a interrupção da ordem profana como
condição necessária para ascender à ordem festiva, que tem caráter sagrado. À
festa pertence in primis o tema da separação do profano. […] Sob tais bases é
possível pensar a festa como uma instituição destinada também a promover – e
não só a negar – a ordem mundana, na medida em que tenta recuperar os
pressupostos últimos em que se apóia.
Para
Durkheim, a ideia de sagrado evoca a superioridade da coletividade sobre o
indivíduo, sua autoridade moral e sua proteção. Para chegar a essa conclusão,
ele parte de uma minuciosa problematização do fenômeno religioso, iniciando
pela definição de crenças, ritos, magia, igreja, sagrado e profano; depois
passa a dissertar sobre algumas teorias em voga no seu tempo, como o animismo e
a teoria naturista de Max Müller.
O
sagrado e o profano também são dois temas sobre os quais Mircea Eliade discutiu
amplamente em suas obras. Eliade
considera que a necessidade da religião está ligada a um desejo ontológico,
isto é, o desejo do ser, oriundo do temor do caos, do espaço desconhecido, não
consagrado, que caracteriza, para o homem religioso, o não-ser absoluto.
O
sagrado é composto de crenças e ritos ou pensamento (no caso das crenças) e
movimento (no caso dos ritos). Os ritos têm a função de prescrever
comportamentos. A pluralidade de crenças religiosas evidencia o impulso criador
da sociedade e também a permanente tentativa do homem de elevar-se a uma vida
superior à realidade cotidiana. As crenças, enquanto representações coletivas,
atribuem significados a essa outra vida, enquanto os ritos estabelecem os
regulamentos que garantem o funcionamento do culto religioso. Por conseguinte,
os ritos são formas de reafirmação periódica do grupo.
Por
este motivo, para Durkheim, a vida religiosa é voltada para ação. E Weber iria
adiante ao dizer que toda ação é racional, portanto as religiões não podem ser
irracionais. Mas em Durkheim o simbolismo religioso também atua com a função de
reproduzir as hierarquias sociais.
Como
foi dito acima, sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa é um estudo
sobre as comunidades totêmicas da Austrália
e também um marco no pensamento social sobre a importância do fenômeno
religioso por pelo menos dois motivos: primeiro, a questão metodológica que ele
enfrenta levanta a relevância do método etnográfico por abrir possibilidades de
conhecimento ainda inexploradas e por evidenciar a dimensão autônoma da
religião. A noção de elementar presente no título da obra remete à perspectiva
do autor de que as sociedades primitivas possuem complexidades intelectuais e
morais de menor amplitude do que as sociedades mais avançadas. Essa uniformidade
leva à manipulação do patrimônio cultural das sociedades primitivas em favor de
um grupo ou clã. Nesse ponto, Durkheim não destoa da noção de evolucionismo
cultural de sua época, mas isso não compromete sua proposta metodológica na
medida em que seu ponto inicial é a necessidade de rediscutir temas importantes
da cultura e da sociedade e a necessidade de diversificação dos próprios
métodos.
O
segundo motivo porque a obra de Durkheim é um marco é a ruptura que promove com
a perspectiva de que a religião é um caleidoscópio de erros. Para ele, uma
instituição humana fundada exclusivamente sobre erros não poderia perdurar no
tempo. Por outro lado, as primeiras representações de mundo que o homem
elaborou foram de origem religiosa e as categorias mentais que fundamentam
nossa compreensão moderna do mundo, como as noções de tempo, espaço, causa,
número, etc. foram primeiramente elaboradas a partir de crenças religiosas. Com
isso, ele não quer dizer que as doutrinas religiosas são verdadeiras em um
sentido científico, mas que a principal prerrogativa da religião é a
organização da existência social, é agregar, portanto. Daí a definição de religião como uma
realidade essencialmente coletiva.
A
caracterização das religiões como sistemas de crenças irracionais, embora seja
um equívoco, evidencia a tensão entre esses sistemas e nosso pensamento
científico. A ciência nos ensinou a contemplar a natureza de outra forma,
afastou a necessidade de um criador e da crença em mundos espirituais e tornou
os ritos inúteis para aplacar as forças da natureza, que aprendemos a controlar
a manipular a nosso favor. Contudo, não possuímos a totalidade do conhecimento,
o que nos impede, por exemplo, de termos certeza se estamos ou não sozinhos no
universo ou se existe algo parecido com um criador escondido em algum canto ou
dimensão que não conhecemos.
Hoje
podemos viver confortavelmente sem nenhuma crença religiosa e com o direito de
não sermos molestados por quem segue qualquer sistema de crença. Podemos ter
espiritualidade sem precisarmos frequentar um templo ou acreditar em um Deus,
podemos explicar o mundo sem o recurso a forças invisíveis e sobrenaturais.
Isso também não suprimiu a religião como força cultural criadora. O fato de a
religião ter sido legitimadora de diversas formas de poder arbitrários ao longo
de milênios não anula seu potencial criador, seu impulso para a ação coletiva.
Por isso, Durkheim compreendia que, em última instância, a religião ensina as
pessoas a viver melhor e fornece (especialmente para sociedades não modernas) o
chão para a estabilidade das relações sociais.
Referências
Autor:
Bertone Sousa, professor, historiador e autor do livro Fé e Dinheiro.
DELUMEAU, Jean; MELCHIOR-BONNET, Sabine. De
Religiões e de Homens. São Paulo: Loyola, 2000.
DURKHEIM,
Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
ELIADE,
Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
MASSENZIO,
Marcello. A História das Religiões na Cultura Moderna. São Paulo: Hedra, 2005.
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