Para que serve a religião?
"Para
que serve a religião?”
À esta pergunta podem
ser dadas diversas respostas, dependendo do olhar que lançamos sobre o fenômeno
religioso. O olhar adotado neste texto é o da Sociologia, pois procura
compreender o fenômeno religioso nas suas relações com a sociedade na qual ele
se dá.
A religião é um
fenômeno que expressa as experiências mais profundas de uma pessoa humana com o
Transcendente e que não pode ser penetrado no seu âmago por um observador
externo. Ao procurarem a religião, as pessoas buscam respostas às suas
expectativas, aos seus desejos e às grandes questões colocadas pela sua
existência no mundo. Por isso, os elementos próprios da religião – símbolos,
mitos, ritos e doutrinas –, ao ressoarem na vida dos praticantes, influenciam
as suas práticas sociais e interferem na vida da sociedade. É justamente por
ter incidência sobre a vida e as práticas sociais que a religião pode ser
estudada como um objeto ao lado de outros em qualquer sociedade.
Religião:
sentido e identidade cultural
Ao explicar a vida e a
morte, o prazer e a dor, a doença e a saúde, a alegria e a tristeza, a religião
apresenta às pessoas um quadro referencial que fornece uma determinada visão de
mundo, a qual possibilita a elas dar sentido e ordem à confusão e ao caos
presentes na existência individual e social. Se a desordem existente na vida
individual e social traz angústia, a religião possibilita o enfrentamento das
diversas situações recorrendo ao Transcendente, e torna-se, portanto, produtora
de sentido para a trajetória humana.
A frase de Ribaldo Tatarana,
do Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, ilustra muito bem essa
afirmação. Ao dizer que a religião é necessária para “desendoidecer,
desdoidar”, ele está apontando para uma das funções sociais da religião:
fornecer sentido para a existência individual e coletiva e organizar, do ponto
de vista das representações humanas, o mundo e a sociedade onde as pessoas
vivem. Ao “desendoidecer, desdoidar”, a religião possibilita às pessoas e aos
grupos sociais organizar a realidade de forma ordenada, tanto do ponto de vista
pessoal quanto do social.
Outro aspecto da
religião é aquele que diz respeito à construção da identidade cultural. A
religião possibilita às pessoas e aos grupos sociais construírem a sua
identidade ou redescobrirem os elementos que permitem a sua sobrevivência
cultural. No “caldeirão” da cultura, ela ganha importância, pois toca nos
elementos mais profundos da vida que são expressos nos mitos, nos símbolos e
nos ritos. Ela faz isso sacralizando esses elementos e tornando-os intocáveis.
Assim, os grupos delimitam aqueles elementos que os diferenciam dos outros
grupos.
Apresentar as razões
que fundamentam a vida humana e dar sentido a elas, nas várias dimensões, é uma
das funções sociais da religião. Ao buscarem nas religiões o sentido ou as
razões da existência, as pessoas e os grupos sociais procuram tornar a vida
mais agradável no mundo e na sociedade. Dessa forma, exercendo essa função, a
religião pode legitimar ou criticar uma determinada forma de organização social
e, por isso, favorecer ou contrariar interesses dos diversos grupos sociais.
Manutenção
ou contestação
Nesse ponto nos
referimos a outras duas funções sociais da religião: legitimação ou crítica,
manutenção ou contestação da ordem social existente. A religião pode exercer,
em momentos variados, essas funções, pois contém os ingredientes necessários
para justificar ou para questionar a vida e que fazem referência aos desejos
mais profundos, aos sonhos e às utopias humanas.
No âmbito das Ciências
Sociais, seguindo a crítica do racionalismo feita à religião, muitos autores
insistiram na função negativa da religião. Para eles, a religião, a priori, tem
a função de legitimar e justificar a ordem social existente. Um desses autores,
Karl Marx, tentou expressar essa negatividade da religião com uma frase muito
conhecida: “A religião é o ópio do povo”. (K. Marx. Contribuición a la crítica
de la filosofia del Derecho de Hegel. In: Assmann, H. e Mate, R. Sobre la
religion I. Salamanca, Ed. Sigueme, 1975, pág. 94.) Segundo ele, a religião tem
a função de alienar as pessoas e os grupos sociais das condições concretas de
sua existência, facilitando, dessa forma, a opressão e a violência por parte
das classes dominantes. No mesmo texto, porém, o próprio Marx chega a admitir a
possibilidade de a religião conter elementos de protesto contra a injustiça: “A
miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro
lado, o protesto contra a miséria real”.
A primeira posição de
Marx, entendendo a religião numa direção negativa, influenciou a maioria
daqueles intelectuais que adotaram os seus pressupostos teóricos. Isso
aconteceu porque esses intelectuais se esqueceram de examinar a religião nas
suas várias manifestações históricas, fixando-se apenas numa abordagem generalizante do fenômeno religioso. Segundo
essa posição, a religião tem a tarefa de exercer o controle sobre a consciência
individual e sobre os vários grupos sociais.
Se examinarmos a
história de muitas religiões, encontraremos as duas funções sociais de manutenção
e de contestação da ordem social existente. Isso pode ser observado no estudo
do judaísmo, em que a religião em diversos momentos foi instrumento de
dominação, mas em outros, como no caso da profecia, contestou a ordem social
existente. O cristianismo surge a partir da prática profética de Jesus Cristo,
criticando profundamente tanto a sociedade como a religião oficial do seu
tempo. O próprio cristianismo, sobretudo a partir da submissão da Igreja Cristã
ao Estado romano, no século 4°, exerceu a função de manutenção do status quo.
Na história da América
Latina, embora o cristianismo tenha exercido, predominantemente, a função
negativa, ele alimentou muitos movimentos populares de resistência e de luta
contra a dominação colonial. A partir de 1960, diversos setores das igrejas
cristãs reagiram de forma profética contra a opressão, recorrendo ao potencial
de crítica e de libertação inerente ao cristianismo.
Já na história do
Brasil, as religiões indígenas e as afro tiveram um papel fundamental na luta
contra a escravidão e pela defesa dos seus valores culturais. A preservação da
identidade cultural, em contraposição aos processos de destruição das culturas
oprimidas, encontra nas religiões um terreno fecundo.
Esses exemplos
levam-nos a olhar a religião de forma mais ampla, procurando compreendê-la nas
suas diversas contradições ao longo da História, mas também descobrindo nessas
contradições o potencial necessário para construir um mundo no qual as
diferenças sejam respeitadas e a paz deixe de ser sonho e poesia para ser o
chão onde a vida possa fecundar livremente.
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